A encruzilhada de Cuca [e do futebol brasileiro]

6 min readApr 29, 2023

Para seguir sua carreira, Cuca precisa se retratar; para se retratar, precisa ser honesto com a sociedade e consigo mesmo — algo que ele não demonstra estar disposto a fazer

Cuca em sua terceira e derradeira coletiva no comando do Corinthians. Foto: Twitter/Reprodução

Eu nunca tinha ouvido falar no escândalo de Berna até quatro ou cinco anos atrás, quando esbarrei por acaso com tuítes que traziam reportagens da época. Foi chocante descobrir que um caso tão sórdido como aquele estava no armário de uma das figuras mais relevantes do futebol brasileiro. A gravidade do fato parecia inversamente proporcional à luz que se dava a ele.

Assim como eu, meus amigos, mesmo os jornalistas e os gremistas, não sabiam. Ninguém com menos de 30 anos sabia. Até que veio a infalível ironia do destino: em outubro de 2020, o Santos contratava Robinho, recém-condenado na Itália em segunda instância por estupro. E quem era o técnico? Cuca, que passou aquele pano lustroso pro atleta [a contratação acabou desfeita por pressão de patrocinadores].

Foi o que bastou para que os restos mortais do episódio de 1987, enfim, começassem a ser desenterrados pela nossa imprensa esportiva. Mas ainda era uma história confusa, cheia de relatos desencontrados. Os quatro jogadores do Grêmio foram condenados na Suíça por 15 meses ou três anos? A sentença era por estupro ou por sexo com menor? Qual era o grau de envolvimento de cada um?

Imagem: Revista Placar/Reprodução

De qualquer forma, o resgate fez com que, pela primeira vez, Cuca tivesse não só que lidar com protestos de torcedores, quando foi contratado pelo Atlético-MG em 2021, como a falar sobre o tema. Defendeu-se e, mesmo sem convencer muita gente, pôde realizar o seu trabalho com relativa tranquilidade, saindo extremamente vitorioso.

Como de praxe, deixou o emprego na alta alegando problemas familiares, voltou na crista da onda em 2022 e fez um trabalho muito ruim, em que parecia ter retornado por obrigação — igualzinho ao ciclo no Palmeiras entre 2016 e 2017, em uma das mostras do seu perfil errático e turbulento.

Foto: Pedro Souza/Atlético-MG

Fora do radar desde então, foi contratado pelo Corinthians — não apenas o segundo time mais popular do país, como o maior do futebol feminino, a equipe do #respeitaasminas. Estranho seria se o barulho não aumentasse. Com pressão e repercussão mais fortes, alimentadas por respostas evasivas e contraditórias na coletiva de apresentação, jornalistas resolveram cavar mais fundo, e o que foi encontrado foi determinante.

Walter Faceta, do Meu Timão, publicou na noite de 24 de abril uma troca de e-mails com a Suprema Corte de Berna que afirmava que: [1] o processo estava sob sigilo de justiça por 110 anos; [2] a melhor fonte para entender os fatos eram duas matérias do principal jornal suíço, o Der Bund, que cobriu o julgamento em 1989 — uma delas, inclusive, já havia sido apontada por um usuário do Twitter.

Os principais pontos relatados pelo jornal:

  • Cuca, Eduardo e Henrique foram condenados por 15 meses de prisão por “atentado ao pudor com uma criança e coação”, enquanto Fernando teve uma pena de três meses por coação;
  • Os três confessaram o ato sexual, mas alegaram ter sido consentido;
  • Um laudo forense identificou sêmen de Cuca e de Eduardo na vítima;
  • A vítima, que na época do crime tinha 13 anos, não compareceu ao tribunal em 1989 por estar sofrendo de “graves transtornos mentais”, que incluem uma tentativa de suicídio.

Ainda segundo o Der Bund, tudo se deu depois que a menina chegou ao hotel com dois amigos para pedir uma camisa aos jogadores, que então levaram os três para o quarto, expulsaram os meninos e a assediaram sexualmente. Ela teria ficado em choque e paralisada, e não foram encontrados vestígios de violência em seu corpo.

No dia seguinte, foi a vez de Adriano Wilkson, do UOL, publicar entrevista com o advogado que defendeu a vítima, Willi Egloff, que basicamente ratificou que Cuca foi, sim, reconhecido por ela como um dos agressores [diferentemente do que ele alega]; que seu sêmen foi detectado em exame do Instituto de Medicina Legal da Universidade de Berna; e que ela tentou suicídio depois do crime.

Página 915 do processo que condenou os quatro atletas do Grêmio. Foto: GE/Reprodução

Estas duas últimas informações também foram confirmadas agora na sexta pela diretora do Arquivo de Berna, Barbara Studer, ao Jornal Nacional. Com acesso a uma das 1.023 páginas do processo, a reportagem confirmou que os atletas foram julgados e condenados por “ato sexual com menor e coação”. Entretanto, o advogado Peter Kriebel fez o adendo de que, diferente da legislação brasileira, na Suíça, coação sexual não é o mesmo que estupro — o que explica parte da confusão gerada por aqui.

Confrontadas com esses fatos, as afirmações de Cuca tornaram-se ainda mais frágeis. No olho do furacão, o treinador pediu as contas depois de dois jogos [não antes de ser abraçado pelos seus comandados, em mais uma simbologia triste da sociedade e do jogador de futebol brasileiros], se colocou como vítima de difamação e justiçamento e contratou advogados para tentar limpar a sua barra.

Agora, restam a ele três caminhos possíveis:

  • Provar sua inocência;
  • Seguir em silêncio ou negação;
  • Assumir o B.O., mostrar arrependimento legítimo e agir para mitigar o mal que causou.

A primeira alternativa parece impossível ante os elementos trazidos à tona. A terceira seria a ideal, mas vejo como improvável. Cuca mostra não entender que não se trata de cancelamento ou justiçamento, mas de uma revolta que exige dele uma contrapartida: no mínimo, honestidade e retratação.

O crime prescreveu, ele não será preso e nem precisa ser condenado moralmente para o resto da vida, mas para seguir ocupando um cargo de tanto prestígio e representatividade, deve mostrar assertivamente que não é mais aquela pessoa de 37 anos atrás.

Seria a única atitude que poderia ressocializá-lo moralmente, mas ele não dá sinais de que está disposto a dar esse passo. Em suas falas, de 1987 a 2023, mostra indignação com as autoridades suíças, com quem protesta, com quem o questiona e até com a vítima, por quem transparece mais rancor do que empatia.

Diz reconhecer que o mundo mudou e querer participar dessa mudança, mas não alia o discurso à prática. Por que nunca pediu desculpas e indenizou a vítima? Por que não contribui com instituições e campanhas de combate à violência contra a mulher?

Porque ele teria que assumir que fez algo monstruoso. Mesmo que a cultura de então fosse outra; mesmo que achasse que a menina tinha 18 anos, como já alegou; mesmo que achasse que pedir camisa era uma desculpa para se envolver com os jogadores; mesmo que achasse que ela estava se divertindo.

Deve ser muito duro, especialmente para alguém que parece enxergar o mundo sob uma ótica maniqueísta entre Deus e o Diabo. “Eu não sou do mal”, ele diz. Talvez Cuca esteja em negação até para si próprio.

Insistindo nesse caminho, será muito difícil voltar a comandar um clube de massa, almejar Seleção Brasileira ou mesmo tentar um salto para a Europa. Sua carreira seguirá manchada e tenderá ao ostracismo. Ainda assim, no conforto da vida milionária que construiu graças a décadas de sucesso como técnico, quando seus esqueletos ainda cabiam no armário.

Ou talvez ele aposte que o tema será esquecido, que seus advogados virão com novos elementos para reembaralhar o caso. Afinal, mesmo com tanta pressão, a maior parte dos corintianos apoiou a contratação, e muitas pessoas se mostram mais indignadas com uma suposta hipocrisia da imprensa do que com o crime.

Mesmo mudando pra melhor, ainda estamos num país em que jogadores de elite, como foi Diego, seguem parças de estupradores condenados sem nenhum pudor, ou em que atletas como Marcinho, que dirigia bêbado, bateu, matou e fugiu, continuam tendo oportunidades em clubes da Série A.

Sobretudo no universo boleiro, ainda há um longo caminho pela frente. Mas eu gosto de ver o copo meio cheio: estamos na direção certa.

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Flávio Lerner
Flávio Lerner

Written by Flávio Lerner

Buscando um lugar ao sol no jornalismo esportivo. Palpiteiro no @PalestrandoCast. Já fui DJ e editor do maior portal de música eletrônica do Brasil.

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