“Futebol consciente” é a chave para entender a transformação do Palmeiras

Flávio Lerner
5 min readJan 7, 2021

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A mentalidade e a visão de Abel Ferreira são opostas aos conceitos obsoletos de Luxemburgo. Não à toa, a evolução salta aos olhos

O futebol é um esporte extremamente complexo, guiado por diversos aspectos e definido a partir de milhares de ações executadas em cada jogo. Logo, querer explicar o trabalho de um treinador a partir de um único ponto seria simplista. Feita a ponderação, diversas pistas nos levam a compreender o que seja, talvez, o principal elemento que diferencia o trabalho de um jovem coach europeu, como Abel Ferreira, de um histórico técnico brasileiro que não consegue fazer seus times produzirem em bom nível há muitos anos, como é Vanderlei Luxemburgo.

Depois da vitória épica sobre o River Plate em Buenos Aires, pela Libertadores, o atual comandante do Palmeiras foi questionado na coletiva por Marcelo Rosenberg, da TV Bandeirantes, o porquê de seus jogadores demonstrarem sempre muita confiança em cada partida. A resposta foi bastante elucidativa:

“Tenho certeza absoluta que a equipe do Gallardo faz tudo o que o treinador espera. Eles sabem o que têm que fazer dentro de campo. E é exatamente o que faço. A certeza e confiança quando meus jogadores entram pra dentro de campo é aquilo que eles têm que fazer, com e sem bola […]. A função e a missão do treinador é ensinar aos jogadores o jogo, fazer com que eles interpretem e percebam o que está a passar dentro de campo, para que depois desfrutem […] de uma forma intencional. Eu não gosto de um jogo inconsciente; eu gosto de um jogo consciente, em que saibam exatamente o que estão a fazer”.

A coletiva de Abel Ferreira depois da gigante vitória em Buenos Aires

Nós não sabemos exatamente os métodos que Abel utiliza nos seus treinamentos — que, segundo ele mesmo, por falta de tempo, têm consistido basicamente em audiovisual e treino parado. Temos a ideia geral de que ele utiliza princípios e metodologias modernos, alinhados com o que há de mais fresco no futebol de alto nível. Mas para além disso, é possível perceber nas entrelinhas que é justamente essa consciência referida por ele a principal diferença em relação ao que vinha fazendo não só Luxemburgo, mas também outros medalhões brasileiros, no Palmeiras e em outros grandes clubes do país.

Em dezembro, em ótima entrevista para Thiago Ferri, do UOL, Gustavo Scarpa deu uma declaração em relação ao trabalho do novo professor que vai totalmente ao encontro dessa ideia:

“Este ano está sendo diferente, porque talvez seja a primeira vez que eu e a grande maioria entra em campo e sabe literalmente tudo que tem de fazer. Como atacar, como defender, bola parada”.

Agora coloquemos essas afirmações em contraste com discursos recentes de Vanderlei Luxemburgo. Nos últimos anos, como um Don Quixote que luta contra moinhos, Luxa tem bradado aos quatro ventos narrativas “terraplanistas”, como “o futebol não mudou” e “a parte tática não é tão importante”. Diz que as inovações táticas da Europa deturparam a essência do “futebol arte” brasileiro, recusando-se a entender que é justamente a evolução coletiva gerada pelos europeus que potencializa o brilho técnico individual.

Insiste não só em métodos obsoletos, mas sobretudo numa mentalidade defasada, de jogo intuitivo, ou “futebol empírico”, como ele mesmo diz. Criar mecanismos de ataque para abrir espaço e gerar linhas de passe? Não! O jogador é quem deve resolver sozinho, apenas com o seu talento. Vanderlei estava louco para se consagrar com a tese em 2020, mas fracassou retumbantemente, como não poderia deixar de ser.

A frase do "pofexô" é tão absurda que virou meme no Twitter

Pra entender melhor essa diferença, troquei uma ideia com meu amigo Roberto Avelar, treinador com licença B pela CBF Academy e pós-graduando em Especialização em Futebol na Universidade Federal De Viçosa. Roberto concorda que nos tempos áureos de Luxemburgo, os treinamentos eram bem menos sofisticados.

“O futebol antigamente não tinha muitos desses princípios táticos de hoje. Treinos de situação de jogo eram menos utilizados, e se usava muito coletivo. Gastava-se mais tempo na parte técnica [passe, finalização…], sem oponente, o que não faz o jogador ter leitura de jogo”, disse o educador físico.

Quem também chancela a tese é Rodrigo Coutinho, colunista do UOL Esporte e analista de desempenho: O futebol está sendo cada vez menos empírico e mais científico, e isso é bom. O esporte está evoluindo. A parte individual tem menos influência que há 10 ou 15 anos. Naquela época, uma bola parada ou uma transição, por exemplo, talvez nem fossem colocadas como momentos à parte. Hoje, você organiza o seu time em todos os momentos do jogo, e os jogadores que são treinados por profissionais atualizados entram em campo sabendo o que fazer em cada um desses momentos — e também conhecendo as principais jogadas do adversário”.

“Quando você tem organização no seu trabalho, você consegue render mais, e no futebol não é diferente. É como se você, na sua rotina em um universo corporativo, tivesse que cumprir algumas coisas. ‘Hora tal eu tenho que abrir tal documento, hora tal, mandar e-mail’… O jogador sabe que tem que ocupar determinado espaço, fazer uma movimentação quando o companheiro faz outra, recompor em tal lugar quando perde a bola, ou auxiliar numa pressão pós-perda. Numa bola parada, fechar o primeiro pau, ou ficar no rebote. E antes não tinha muito isso. Era mais vago. Do tipo: ‘joga ali, vai pra dentro, cruza na área’…”, continua Coutinho.

Cebola e Abel Ferreira. Foto: Cesar Greco/Reprodução

Outra mudança importante é a busca pelos técnicos pela variação nos treinos, proporcionando novos desafios e situações aos jogadores. Como destacou Avelar, “antes se repetia a mesma situação o ano inteiro, com menos complexidade. Não se pensava tanto no treinamento, nos princípios do jogo. Sem isso, onde o jogador vai aprender a jogar, a interpretar?”.

Pode-se observar também que o trabalho de Abel teve seu caminho encurtado não só por ter pego uma base a partir do auxiliar fixo palmeirense Andrey Lopes, o Cebola — um homem claramente com uma visão mais antenada. E nem por ter em suas mãos o melhor elenco com que já trabalhou. Os jovens que subiram das categorias de base têm sido fundamentais, porque foram formados a partir de processos mais refinados. São jogadores modernos, com desenvolvimento tático e leitura de jogo mais apurados.

“Os meninos do Palmeiras não jogam o que jogam à toa. Os treinos realmente foram bons na base, teve muito conteúdo tático no seu processo de formação. Antigamente não se tinha isso. Era técnica e jogo”, complementou Roberto.

O português encontrou em São Paulo, portanto, uma estrutura de base extremamente profissional e com metodologia avançada, que converge diretamente com a sua filosofia europeia. É até irônico que o Palmeiras tenha começado 2020 com mentalidades de gestão tão opostas entre base e profissional.

Jorge Jesus já foi um choque enorme na cultura futebolística verde e amarela em 2019. Abel Ferreira, mesmo enfrentando obstáculos duríssimos como calendário estrangulado e surto de covid-19 no elenco, está sendo mais um a mostrar um salto qualitativo muito grande em relação ao que era padrão por aqui. Aos poucos, o esporte mais popular do país vai dando sinais de saída do obscurantismo para se alinhar ao presente. Que o movimento não retroceda — e se intensifique.

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Flávio Lerner

Buscando um lugar ao sol no jornalismo esportivo. Palpiteiro no @PalestrandoCast. Já fui DJ e editor do maior portal de música eletrônica do Brasil.