Futebol é contexto, e o Brasileirão 2022 deixou isso mais claro do que nunca

Flávio Lerner
6 min readNov 16, 2022

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Foto: Cleiton Alves/Reprodução

Seguimos cercados por visões míopes e imediatistas, mas aos poucos, o profissionalismo vai ganhando o seu espaço

Quando o Palmeiras passou por oscilações importantes, sequências longas sem resultados e desempenhos ruins em 2021, não foram poucos os que contestaram Abel Ferreira. A segunda Libertadores conquistada pelo gajo o colocou, com justiça, em um patamar lendário dentro do clube, mas, por birra ou miopia, muitos comentaristas e torcedores insistiram em seguir o desmerecendo pelo desempenho com bola.

Não errou quem o fez de maneira ponderada, apontando que propor o jogo e ter equilíbrio em uma competição de tiro longo eram pontos ainda a serem desenvolvidos. Acontece que, diferentemente do primeiro grupo, essas pessoas conseguiam enxergar o contexto: o trabalho tinha muito potencial, oscilações são naturais e não é do dia para a noite que você desenvolve mecanismos refinados em fase ofensiva — ou ataque posicional, como dizem os portugueses.

Bastou a primeira pré-temporada realizada no CT da Barra Funda para que o coletivo desabrochasse em sua melhor forma: o Palmeiras de 2022 pode não ter sido a faceta mais vitoriosa da era Abel, mas foi sem dúvidas a mais consistente. Qualquer análise honesta previa que, com os raros tempo e continuidade, o repertório do Verdão tendia a evoluir. Terminou justamente como a melhor equipa da temporada, ganhando o troféu mais difícil, no dia em que Ferreira completou dois anos no cargo. Antes de sua chegada, inclusive, vários dos protagonistas de hoje eram vistos por muitos como dispensáveis. Gustavo Scarpa, o mais novo Bola de Ouro, que o diga.

Abel Ferreira com a desejada taça do Brasileirão. Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Contexto. Ele está sempre ali, embora tenha sido sumariamente ignorado no futebol brasileiro. Mas as coisas estão mudando. O respiro conceitual e tático importado por técnicos estrangeiros e o surgimento das SAFs são as principais novidades para um movimento de ruptura que, devagarinho, está levando o nosso esporte mais popular ao profissionalismo merecido. Resultados vêm a partir de boas gestões, que são capacitadas a enxergar o todo. Elas ainda são minoria, mas a temporada que se encerrou no último domingo mostrou, para quem quiser ver, que esses bons exemplos vieram para ficar.

O caso mais poderoso talvez seja o do Fortaleza. Em 2021, a 12ª folha salarial da Série A terminava o campeonato em quarto lugar. Em quatro anos, a equipe que amargava a Série C de 2008 até a eleição de Marcelo Paz, em 2017, chegava à elite do continente. A contratação de Vojvoda, um dos destaques das últimas duas temporadas, não se deu por acidente. A raridade das raridades: um clube brasileiro escolhia seu treinador a partir de scout e diretrizes.

Marcelo Paz e Juan Pablo Vojvoda: símbolos do sucesso do Fortaleza. Foto: Mateus Lotif/Fortaleza EC

No seu pior momento, amargando uma lanterna ao final do primeiro turno com apenas 15 pontos, o Leão do Pici não recorreu ao caminho da cegueira e do desespero. Compreendeu aquele contexto: o time disputava três competições e estava especialmente desgastado pela quilometragem percorrida. Nesse calendário insano, ninguém viaja mais do que as equipes do Nordeste.

Em vez de jogar o bebê fora com a água do banho, como é o padrão, a direção soube detectar os problemas e fazer correções de rota, através de contratações pontuais e ajustes táticos. Resultado: a terceira melhor campanha do returno, com assombrosos 40 pontos. Não foi só o técnico, não foi só a queda na Libertadores. Assim como um único jogador não ganha uma partida, dificilmente uma única variável tem impacto sozinha. Vojvoda é excelente, mas em um ambiente caótico e desestruturado, como o do São Paulo, dificilmente se destacaria. É o que acontece com Rogério Ceni.

Fortaleza se classificou para a Libertadores ao vencer o Santos na última rodada. Foto: Felipe Cruz/Fortaleza EC

O Botafogo viveu uma jornada parecida. Corroído por décadas de amadorismo, o clube foi comprado por John Textor, que mostrou, com palavras e ações, que sabe o que está fazendo. O começo não foi fácil. Luís Castro precisou se adaptar a um contexto peculiar, foi ganhando peças e, depois de flertar com Z4, terminou perto do G8. Não foi uma campanha brilhante, mas soube superar longas sequências ruins, que normalmente culminam em demissão, terminou acima das expectativas e calou os apressadinhos.

Em contraponto, os movimentos de times como o já referido São Paulo, o Santos e o Ceará nos lembram que a estrada ainda é longa. O Vozão seguiu a direção oposta do maior rival, colhendo resultados opostos. Tinha material humano para muito mais, mas se afundou na areia movediça do Z4 depois das clássicas trocas sucessivas de treinador, uma das melhores receitas a serem seguidas por quem quer ser rebaixado. Dificilmente o alvinegro não estaria em fase bem diferente caso não tivesse cortado a cabeça de Guto Ferreira um ano e meio atrás, na primeira oscilação. A grama do vizinho era mais verde, mas em vez de aprender com a metodologia do rival, tentou cortar caminho, e foi se perdendo.

Ceará podia muito mais, mas terminou rebaixado. Foto: Leo Piva/Estadão Conteúdo

Grande decepção do campeonato, o Atlético Mineiro mostrou que investimento pesado, por si só, não garante sucesso. Já o Cruzeiro, depois de bater no fundo do poço dos poços sem fundo, virou o fio. Ronaldo reformulou com muita competência o departamento de futebol, e colheu com sobras a melhor campanha da Série B. Detalhe: com uma folha salarial menor do que a dos dois anos em que a Raposa sequer frequentou a zona de acesso — e significativamente menor do que a do Grêmio, que subiu sem sobrar, e cujo comando segue dando os mesmos sinais ruins que o levaram à terceira queda.

Por fim, cito o Inter, cuja gestão ainda não me parece confiável, já que até ontem, imperava a mesmice das trocas aleatórias de técnico. Mas depois de um primeiro semestre assustador, corrigiu o rumo apostando num treinador “da aldeia” — a partir da lógica falaciosa de que os estrangeiros deram errado por serem estrangeiros —, e com profissionais qualificados de scout, realizou o melhor mercado da janela de inverno.

Trabalho de excelência de Ronaldo foi reconhecido pela torcida do Cruzeiro. Foto: Alessandra Torres/AGIF

Contrariando os prognósticos baseados no seu histórico recente, Mano Menezes mostrou que ainda tem muita lenha pra queimar, e junto a contratações certeiras e pouco hypadas, levou o Colorado à maior pontuação de sua história nos pontos corridos. Os próximos passos vão apontar se houve, de fato, aprendizagem, ou se persistirá o método de tentativa e erro.

O que parece claro é que, diferentemente de outras épocas, em que modismos iam e vinham sem deixar legado, este ano revelou uma tendência de consolidação rumo a um futuro melhor. A gestão de Paz, as conquistas e reflexões de Abel Ferreira e as transformações radicais proporcionadas por Textor e Ronaldo apontam para o mesmo norte. O caminho é longo e árduo, mas ao menos, está desenhado.

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Flávio Lerner

Buscando um lugar ao sol no jornalismo esportivo. Palpiteiro no @PalestrandoCast. Já fui DJ e editor do maior portal de música eletrônica do Brasil.